FILOSOFIA

O problema da percepção originária
Ensaio Filosófico de Jul Leardini
(Texto base: A Dúvida de Cézanne – Merleau-Ponty)

          Quando Merleau-Ponty coloca a existência de uma percepção originária que já se constituiria numa criação, numa expressão, e que ao tentarmos expressá-la novamente, haveria duas expressividades em jogo, me acorre ao pensamento que, na realidade, nesse fenômeno, deve haver três expressividades em jogo e não apenas duas. Vamos tentar aqui mostrar o porquê.

“Quando Cézanne pinta uma maçã, não pinta o exterior da maçã,
pinta a maçã com sua carne, pinta seu diálogo com as outras maçãs,
seu lugar na composição." (1)

          Cézanne olhava para a paisagem e para os objetos e queria ver mais do que um homem condicionado pelo olhar morto vê. Ele queria ver o mundo, queria sentir o movimento das células, dos átomos, da vida em constante mutação e, tarefa impossível para um meio quase estático que é a tela, jamais conseguiu plenamente.

          Como um homem conseguirá ver todo o gérmen que movimenta a vida e depois paralizá-lo numa tela? Talvez seja o mesmo problema transcendental que teria levado Van Gogh ao desespero, à alucinação e fatalmente à morte prematura. Querer ver mais do que se pode ou do que se consegue, pode ser esse o paradigma de artistas deste jaez.

          A esquizoidia de Cézanne pode ter muito a ver com essa busca de um olhar que capte a manifestação primeira da natureza, o impulso primordial que a anuncie aos olhos do pintor em sua forma essencial, rude, quase grotesca, desnudada à percepção atenta e singela de um pintor que busca se colocar na mesma freqüência dessa manifestação primeva, que não foge do ritual de preparar o olhar, o pensamento, a percepção e o corpo para deslindar essa anunciação que se faz presente com toda a sua pujança e autenticidade, como um médium que se coloca à disposição das entidades para servir de instrumento físico para a transmissão da mensagem.

          Mas creio que para Cézanne apenas isso não o satisfaria. Ele queria se inserir nesse movimento do mundo e da natureza e, ao mesmo tempo que servia como instrumento de anunciação e transmissão desse mundo aos olhos do homem, estaria também inserido nele, participando, sentindo, gozando, satisfazendo-se na mediação e no ato em si de viver a manifestação do mundo através da sua palheta e de seu pincel.


“A partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes”. (2)

          Quando observamos o quadro “Cerejas e pêssegos”, de Cézanne, verificamos que a perspectiva clássica do quadro é rompida diversas vezes. Percebemos aqui, claramente, a tentativa do pintor de materializar os objetos, de dar voz a eles, para que eles se anunciem e nos falem de si mesmos, comuniquem a nós a sua existência, a sua força, a sua pujança, a sua vida, o seu “dentro” e o seu “fora”, proporcionando um diálogo entre as cerejas e os pêssegos, um diálogo dessas frutas com a toalha, com a mesa, com o vaso, com o fundo e, evidentemente também, com o observador que os colocará no mundo a partir da manifestação secundária do pintor ao pintar o quadro, uma vez que a manifestação primeira já se teria realizado simplesmente pela existência dos objetos em si.

“Cézanne não sente desejo de viajar. É um camponês, culto, mas camponês. Volta para sua terra, ama Provence, que lhe dá a força de sua luz e que recorta as formas. Seu mar é plano, terroso. É matéria. Cézanne pinta a matéria, faz a realidade entrar na pintura" (3)

          Do mesmo modo, quando nos deparamos com “A Montanha Sainte-Victoire, vista de Bibémus”, observamos a força da matéria nas pedras ocre-avermelhadas, não apenas insinuando-se aos nossos olhos, mas querendo tomar conta do nosso olhar, nos falando de sua existência, de sua pulsação e de sua vida ativa.

          Merleau-Ponty, em “A Dúvida de Cézanne”, anuncia um paradoxo na obra de Cézanne, o qual, partindo da impressão imediata da natureza, buscaria sua realidade, sem, no entanto, abandonar a sensação obtida no momento do contato com a natureza. Pergunto: Como fixar a realidade sobre a tela se não conseguirmos abandonar as sensações que nos impulsionaram a pintar, por segundos que sejam, para que seja possível transpor essas sensações com o pincel e as tintas para o meio palpável?

          Vejo que esse dilema é básico para se entender o quadro “A Montanha de Sainte-Victoire, vista dos Lauves”, onde o pintor parece ter se entregado ao “caos das sensações”, como diria Merleau-Ponty, porque nessa obra Cézanne, através de manchas de cor, representa a paisagem várias vezes retomada, de uma forma mais livre e quase abstrata, abandonando as três dimensões e unindo, na parte esquerda do quadro, o céu com o primeiro plano, acentuando o caráter bidimensional da obra pictórica. As tonalidades quentes parecem nos aproximar da paisagem, ao passo que os tons de azul nos afastam, nos levando a refletir sobre as palavras de Merleau-Ponty sobre a tentativa de Cézanne de, ao mesmo tempo em que se aproximava da natureza, também se afastava, numa busca constante de entendê-la, mas também de manter a distância, para através do estranhamento, engrandecê-la.

          Na verdade, Merleau-Ponty diz:


“Cézanne não acreditou ter que escolher entre a sensação e o pensamento,
como entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e sua maneira fugaz de aparecer,
quer pintar a matéria em via de se formar,
a ordem nascendo por uma organização espontânea.” (4)

          Indo agora ao tema que me faz mover essas palavras no espaço em branco desse papel-tela, evoco as palavras de Rodrigo Naves, no seu texto “Quatro esboços de leitura”:

“A percepção originária, segundo Merleau-Ponty, e se aceita-se, ainda segundo Merleau-Ponty, que é ela que Cézanne busca e pinta, já é também expressão.
O problema da realização em Cézanne estaria aí. No que percebe já encontraria a expressão que ainda lhe cabe expressar no quadro.” (5)

          Se a visão de uma paisagem já é uma criação originária, uma expressão anterior à expressão secundária do artista, esse olhar do artista sobre a paisagem é criador em dois sentidos: no sentido primeiro, na percepção e criação original do olhar, e no sentido segundo, na recriação na tela dessa percepção original.

          Mas caberia ainda perguntar: essa expressão original do olhar não seria, na verdade, secundária à existência da paisagem em si, independente do olhar que a transforma em expressão original?

          Se assim for, a existência dessa paisagem em si independeria do olhar do artista, estaria lá na sua totalidade. O olhar do artista sobre a paisagem apenas inauguraria o olhar sobre a coisa, transformando o independente em uma paisagem relacionada a um olhar singular. Esse olhar singular seria totalmente subjetivo.

          Cada olhar singular sobre a paisagem a transformaria em uma paisagem que ofereceria uma pluralidade de olhares singulares, o que a subjetivaria ao infinito dos olhares.

          Assim, a paisagem primeira, que lá está, sozinha, abandonada dos olhares, seria transformada numa paisagem percebida, olhada e imaginada, porque a retenção da imagem na memória deveria conter alta dose de imaginação para que pudesse ser reconstituída na tela.

          Num terceiro momento, ao se transpor essa imagem olhada e percebida para a tela, teríamos uma tentativa de aproximação com a realidade primeira.

          Haveria então três expressividades em jogo: a expressividade primeira, a do mundo; a segunda, a percepção pessoal sobre a paisagem primeira; e a terceira, a linguagem da pintura.


“A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime,
instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos – (...) a tela do pintor –
de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.” (6)

Referências Bibliográficas:
(1)
"Coutagne, curador francês da exposição "Cézanne em Provence", apresentada em Washington, de 29 de janeiro a 7 de maio de 2006, centenário da morte do artista.
(2) Merleau-Ponty, Maurice, Fenomenologia da Percepção, pág. 266.
(3) Coutagne, curador francês da exposição "Cézanne em Provence", apresentada em Washington, de 29 de janeiro a 7 de maio de 2006, centenário da morte do artista.
(4) Merleau-Ponty, Maurice, A Dúvida de Cézanne, pág. 128.
(5) Naves, Rodrigo, Quatro Esboços de Leitura, pág. 147.
(6) Merleau-Ponty, Maurice, Fenomenologia da Percepção, pág. 248.

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